DIAGNÓSTICO COMO CAUSA? UMA CRÍTICA À ADESÃO ACRÍTICA DO PSICÓLOGO AO MODELO MÉDICO
Neste texto, compartilho uma reflexão inspirada por uma fala de Hélio Guilhardi no XIII Congresso TCR, que questiona a adoção acrítica de diagnósticos médicos por psicólogos. Discuto como, na busca por validação social e técnica, muitos profissionais acabam tratando o diagnóstico como causa do sofrimento, esvaziando a análise funcional.
PSICOTERAPIADIAGNÓSTICOPSIQUIATRIA
Maicon Danese
6/20/20254 min read


Em uma de suas falas durante o XIII Congresso TCR, Hélio Guilhardi afirmou algo que provocou desconforto e, ao mesmo tempo, lucidez entre os analistas do comportamento: “O diagnóstico pertence a um contexto. Diagnóstico psiquiátrico é diagnóstico do médico, não do psicólogo. Trabalhamos os comportamentos [através das contingências de reforçamento], não o diagnóstico. O psicólogo, com seu sentimento de inferioridade diante do médico, achou o máximo aprender coisas de médico.”
A frase, dita de forma direta, talvez até incômoda, não é um ataque gratuito à interdisciplinaridade ou ao valor do diagnóstico. Trata-se de um convite à análise crítica sobre como psicólogos, muitas vezes em busca de validação social através das mídias digitais ou técnica, adotam a linguagem médica sem considerar as implicações epistemológicas[1] dessa escolha. Mesmo quando teoricamente reconhecem que o diagnóstico não é uma causa, muitos profissionais acabam se comportando como se fosse.
É importante reconhecer que nenhuma abordagem psicológica séria afirma, abertamente, que o diagnóstico é a causa do sofrimento. No entanto, a forma como muitos psicólogos usam e organizam suas intervenções frequentemente sustenta, na prática, essa perspectiva causal. Atribui-se a um rótulo — “ansioso”, “borderline”, “depressivo” — a explicação do comportamento, como se a nomeação bastasse para justificar o que o sujeito sente, faz ou evita fazer.
Ao fazer isso, o psicólogo reforça uma lógica circular: “ele age assim porque é borderline, e sabemos que é borderline porque ele age assim.”
Essa circularidade esvazia a análise funcional e reduz o sofrimento a uma essência interna, abstrata e imutável — algo que contradiz os fundamentos da própria prática clínica fundamentada na história de contingências e na modificação possível dos repertórios. Guilhardi apontava, com ironia e precisão, o quanto essa apropriação acrítica do modelo médico muitas vezes nasce de um sentimento de inadequação profissional.
Há psicólogos que, por se sentirem menos valorizados ou respeitados que médicos na hierarquia institucional da saúde, passam a adotar uma linguagem médica como tentativa de “elevar” sua prática, buscando nela uma forma de validação social e técnica. É fácil observar como que os profissionais da saúde atuam sob forte influência de uma estrutura organizacional que posiciona o médico como o "capitão" desse campo — o centro de decisões, diagnósticos e direcionamentos.
Entretanto, essa centralidade não é produto direto do saber acumulado ao longo da história humana, nem tampouco da eficácia de suas intervenções isoladas. Trata-se de uma construção histórica e social sustentada por um sistema que atribui ao campo médico um enorme valor de capital simbólico, econômico e político. A medicina, como área, ocupa um lugar privilegiado nas decisões que guiam condutas, legislações e protocolos, inclusive sobre dimensões que extrapolam sua formação, expropriando, muitas vezes, saberes de outras áreas.
Diante disso, muitos psicólogos, mesmo que não de forma consciente, acabam se alinhando a essa lógica dominante, importando termos e práticas que garantam algum tipo de reconhecimento social, mas que silenciam a potência crítica e analítica da psicologia como campo autônomo de produção de conhecimento.
Isso não significa que o psicólogo deva ignorar o diagnóstico médico ou desconsiderar os critérios clínicos quando em atuação conjunta com outros profissionais. Mas é fundamental lembrar que, na Análise do Comportamento, não trabalhamos com etiquetas, e sim com relações — entre os antecedentes, as respostas e as consequências. Um diagnóstico pode até informar sobre padrões gerais que foram percebidos por um outro profissional (psiquiatra, nesse caso), mas jamais deve substituir a análise da função que aquele comportamento tem para aquele sujeito.
Nesse sentido, a crítica de Guilhardi não é uma negação da importância de compreender quadros clínicos ou de dialogar com outras áreas da saúde. É, antes, um alerta: o psicólogo que se limita a repetir categorias diagnósticas sem investigar os processos que mantêm o comportamento em questão abandona a análise para se tornar apenas um reprodutor de rótulos.
Retomar o compromisso com a análise funcional é um ato de resistência teórica e ética. É uma escolha por compreender o sofrimento como resultado de histórias reais, e não como expressão de nomes vazios. E, acima de tudo, é uma forma de devolver ao sujeito sua dignidade — aquela que se perde quando se supõe que a explicação de seu sofrimento está numa palavra que o define, e não em sua história pessoal e de interação com o mundo particular.
[1] Quando falamos em implicações epistemológicas, estamos discutindo o que essa escolha comunica sobre o tipo de conhecimento que o profissional considera válido ou verdadeiro. Ao usar termos médicos como “transtorno”, “sintoma”, “comorbidade” ou “diagnóstico” como se fossem explicações em si, o psicólogo abandona o modelo funcional, típico da Análise do Comportamento. Em outras palavras, ao agir assim, o psicólogo está, mesmo sem discriminação, aderindo a uma forma médica de compreender o sofrimento humano — uma forma que pressupõe entidades internas a serem nomeadas, e não processos interativos a serem analisados.
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