IA E A PROMESSA DE ... "ALGUMA COISA PRA QUEM"?

Neste texto, faço uma analogia entre aprender a dirigir um carro manual e o processo de formação clínica. Compartilho como foi importante, pra mim, passar pelas dificuldades, sentir o processo e desenvolver sensibilidade.

IAPSICOTERAPIAAPRENDIZAGEM

Maicon Danese

6/20/20254 min read

Aprender a dirigir foi uma experiência marcante. Lembro bem da tensão ao tentar dominar um carro com câmbio manual. A embreagem exigia coordenação que eu ainda não tinha. O motor “morria” no meio da rua — uma das vezes foi na Avenida Presidente Vargas em horário de pico (av. conhecida na cidade e de enorme circulação). E bastava uma subida para o suor escorrer nas mãos. Estacionar com pessoas vendo era complexo, eu tentava evitar. Mas foi nesse processo - cheio de falhas e tentativas — que comecei a desenvolver algo essencial: sensibilidade.

Dirigir um carro manual exige atenção ao som do motor, ao tempo de resposta, à força que se aplica nos pedais. Não é só pisar e seguir... é necessário perceber, ouvir, sentir... E, com o tempo, isso tudo vira parte natural do processo.

Depois que você aprende, dirigir um carro automático é um conforto. Não precisa pensar em marchas, nem em ponto de embreagem. O carro faz por você. Mas também tira de você algo importante: o envolvimento direto com o processo.

Recentemente, vi uma empresa postar no Instagram que seria uma boa ideia usar Inteligência Artificial para mediar sessões terapêuticas. A promessa? Mais eficiência, agilidade, otimização.

Mas o que me preocupou não foi a tecnologia em si — inclusive já fiz jogos no passado, sistemas na web e sites completos — e sim o que essa proposta revela sobre como temos tratado o processo clínico e o desenvolvimento de repertórios: como algo que pode ser "automatizado", "suavizado", "encomendado".

Só que a psicoterapia não é uma esteira de produtividade. Não é feita de respostas prontas, nem de atendimentos previsíveis. Ela é feita de encontros possíveis. Envolvendo escuta, mas também silêncio. De insegurança também, pois é nela que, muitas vezes, surgem as perguntas certas — ah, e alguns choros.

Agora imagine o seguinte: um motorista experiente, que passou décadas ao volante. Já dirigiu tanto, talvez até trabalhe com isso, que trocar marcha é tão habitual, é tão prático que, para ele, tanto faz se o carro é manual ou não. O custo de resposta é praticamente o mesmo. Então ele olha para alguém que está começando e diz: “Pra quê aprender com carro manual? Compra um automático. É mais fácil.” [Meu senhor das santas contingências de reforçamento do espírito do altíssimo das crenças do inconsciente coletivo dos animais domésticos e Silvestres e Stallone: vai tomar no urubu]

Ele esquece de um detalhe: o que é simples pra quem já sabe, pode ser um obstáculo imenso pra quem está começando, só que também uma grande oportunidade de aprendizado para o resto da vida. Além disso, o carro automático tem um custo maior (aquisição e manutenção - meu antigo Citroen sabe que a indireta foi para ele), e se der problema, você depende de assistência técnica que não está preocupada em atendê-lo se você é do típico cliente que comprou depois de juntar moedinhas o ano inteiro. Ah, e tem peças específicas e um sistema que você não domina (nem o seu vizinho). E se, um dia, a vida muda — e a gente sabe que muda — e só te sobra um carro manual? O que você faz?

Claro que o carro manual também tem seus custos. Ele também foi, um dia, novidade. E não é difícil imaginar que, quando surgiram os primeiros automóveis, muita gente que andava de charrete ou montava cavalos deve ter dito: “Você vai trocar isso por um carro? E se ele quebrar? E se faltar combustível? Vai sentir falta do velho cavalo.”

A história é feita dessas transições. Talvez estejamos mesmo caminhando para uma nova realidade, em que a tecnologia esteja presente em todos os aspectos da vida — inclusive na clínica. Mas aqui está a questão: a gente não vive ainda nesse futuro consolidado. Estamos vivendo uma transição — e uma transição rápida demais.

A pessoa que andava de cavalo sabia cuidar do cavalo. Sabia alimentá-lo, protegê-lo, identificar quando ele estava doente. Quando essa pessoa passou a usar o carro, ela não apagou o que sabia — ela somou. Se o carro falhasse, ela tinha repertório para seguir a pé, ou até voltar ao cavalo, se fosse preciso.

Hoje, a velocidade das mudanças não tem dado tempo nem espaço para isso. A tecnologia não tem ampliado nosso repertório — tem substituído. E, mais do que isso, tem ensinado um novo padrão: “não faça, alguém faz por você.”

Enquanto antes eu precisava me comportar para manter o cavalo vivo, ou para manter o carro funcionando, hoje tudo parece estar pronto, automático, autônomo — e, com isso, eu deixo de fazer parte ativa de qualquer processo. Só que, ao deixar de fazer, deixo também de me envolver. E quando deixo de me envolver, perco contato com reforçadores naturais: o prazer de perceber que algo foi construído por mim, com meu esforço, minha presença, minha escuta.

É nesse vazio que a ansiedade cresce. É aí que a frustração com a vida e a fenotípica apatia aparecem. E, paradoxalmente, é nesse cenário que a IA surge como promessa de solução — automatizando também a psicoterapia. Você não precisa ser psicoterapeuta, é só ter dinheiro para comprar um bom PC, pagar por um serviço de IA seguro e eficiente, e se possível, encontre clientes para atender que assine um termo de consentimento. Só não vá dizer para eles procurem respostas na IA por si mesmos.

Mas o que cura em um processo terapêutico não é a resposta rápida, nem a organização do discurso. É o produto do encontro de construção mútua: fizemos o que foi possível.

A IA pode ser útil como ferramenta (eu amo). Pode apoiar na construção de materiais, organizar alguns dados e informações, lembrar de conteúdo do passado e perdido. Mas jamais substituir a relação. Porque presença não se programa. Escuta não se automatiza. Sensibilidade não vem de banco de dados — vem da prática pessoal, da vivência, do envolvimento.

Não se trata de rejeitar a tecnologia. Mas de fazer um alerta: estamos formando profissionais que não sabem mais andar a pé. Que nunca souberam cuidar do cavalo. E que, por isso, quando o automático falha, não têm a menor ideia do que fazer.

Na clínica, como na direção, escolher o automático é confortável.

Mas aprender com o manual ainda é o que forma motoristas.

E terapeutas.