VALORES SÃO COMO ESTRELAS, NÃO ATALHOS

Neste texto, compartilho uma reflexão voltada a psicólogos(as) e estudantes de psicologia sobre a importância de operacionalizar conceitos na prática clínica. Abordo como termos abstratos, como "pessimismo" ou "autenticidade", só ganham sentido terapêutico quando analisados dentro da tríplice contingência: antecedentes, respostas e consequências.

PSICOTERAPIAVALORES

Maicon Danese

6/20/20259 min read

Minha conversa aqui se dirige ao psicólogo(a) que está ingressando na área ou ao estudante – curioso e sedento por conhecimento –, que pode esperar da prática psicoterapêutica um exercício contínuo de atuação e, ao mesmo tempo, um serviço prestado ao cliente que busca ajuda.

Há um bom tempo venho repetindo a importância de saber operacionalizar – ou seja, traduzir conceitos abstratos ou vagos em termos observáveis e mensuráveis, permitindo que sejam analisados e trabalhados de forma prática.

Por exemplo, imagine alguém que diz ser uma pessoa pessimista. O que isso significa na prática? Em vez de tratar o pessimismo como um padrão comportamental[1], podemos analisá-lo como um padrão de comportamento que ocorre sob certas contingências. Para isso, investigamos os três elementos principais:

Antecedente (o que ocorre antes da resposta):

  • Em quais situações essa pessoa expressa preocupações com mais frequência?

  • Há algum estímulo específico que evoca verbalizações pessimistas? Por exemplo, conversas sobre o futuro, desafios profissionais, relacionamentos?

  • Ela costuma antecipar cenários negativos quando se depara com tarefas difíceis ou situações novas?

Resposta (aquilo que é feito):

  • Quais palavras ou expressões essa pessoa usa para demonstrar pessimismo?

  • Ela verbaliza frases como "isso nunca dá certo", "eu sempre erro", "não adianta tentar"?

  • Seus gestos também refletem pessimismo (expressão facial, tom de voz, postura corporal)?

Consequência (o que acontece depois da resposta):

  • Como as pessoas ao redor reagem quando ela expressa pessimismo? Recebe atenção, apoio, ou tentam mudar seu discurso?

  • Isso gera um alívio momentâneo, evitando que precise se esforçar para enfrentar desafios?

  • Ela reforça esse padrão quando percebe que outras pessoas também compartilham da visão negativa?

Ao analisar dessa forma, vemos que o pessimismo não é um traço fixo, mas um comportamento que ocorre dentro de uma contingência específica. Assim, a operacionalização permite que conceitos abstratos se tornem algo que pode ser observado, analisado e, se necessário, modificado no contexto psicoterapêutico.

Quanto mais participo de encontros e discussões, mais me convenço da diferença que isso faz na escuta ativa e no diálogo contínuo no processo psicoterapêutico. Quando o terapeuta sabe operacionalizar, ele não se prende a rótulos vagos, mas consegue explorar comportamentos concretos, ajudando o cliente a compreender sua própria experiência de forma mais clara e funcional.

O profissional que se capacitou na operacionalização dos conceitos verbalizados pelos clientes estará mais habilitado a acompanhar o outro de muitas maneiras, por meio de diferentes assuntos, sem perder de vista o fio condutor essencial da psicoterapia – e, claro, cada um entenderá esse fio à sua maneira. De forma genérica, poderíamos afirmar que o objetivo final de qualquer processo terapêutico está no desenvolvimento de repertórios, como auto-observação, autoconhecimento, autoestima, autocontrole... que promovam autonomia e independência do sujeito. Mas, para efeito de praticidade, deixemos esses conceitos para outra conversa.

Nos últimos anos, vários grupos de psicólogos(as) e comunidades sociais sobre saúde mental – basta um passeio pelo Instagram ou Twitter para perceber – se apropriaram da ideia de que valores são um guia para conduzir a vida em direção a algo "essencial". Preciso concordar que ter uma referência para orientar escolhas parece uma estratégia eficiente para avançar. Mas o ponto central não está apenas em chegar a essa conclusão, e sim em como esse princípio se traduz em ações concretas.

O que se define ou se adota como eixo pode ajudar a redirecionar trajetórias, ajustar condutas, selecionar abordagens, planejar desenvolvimentos – entre tantas outras possibilidades. Mas até que ponto isso se sustenta na prática cotidiana? Qual é o limite dessa lógica difundida sem critério?

Se minha explicação está clara, então fica evidente que a consciência dos próprios valores exerce uma função primordialmente reguladora no processo psicoterapêutico e, de forma mais ampla, nas escolhas pessoais. Em outras palavras, valores operam como regras que direcionam a busca por experiências significativas – e, se algo é valioso, podemos dizer que funciona como um reforçador.

Por incrível que pareça, temos uma imensa dificuldade em abandonar as ideias em prol da prática – aliás, acabei de me flagrar fazendo isso. E essa resistência se manifesta de diversas formas. Uma delas está na maneira como conceitos essenciais, como os valores, são transmitidos sem o devido preparo.

Nesse sentido, a divulgação imprecisa ou descontextualizada tem levado muitas pessoas a acreditar que, ao descobrir seu sentido de vida, podem utilizá-lo como uma fuga do mal-estar. Como se fosse possível criar uma redoma blindada, um abrigo psicológico que as isolasse das adversidades do mundo material.

Acho digno que muitos profissionais se dediquem a essa busca, que se empenhem em oferecer aos seus clientes um caminho que alivie a sensação de que a vida perdeu o sentido. Mas há um problema nisso – especialmente quando essa promessa se torna um produto: valores não são atalhos e, sozinhos, não bastam.

O risco está em reduzir essa jornada a uma fórmula simplista – como se bastasse encontrar um significado para que tudo automaticamente se reestruturasse.

Antimentalismo: uma consideração fundamental

Um dos pilares fundamentais da nossa abordagem é o antimentalismo – ou seja, rejeitamos explicações baseadas em estruturas hipotéticas (mentais) ou em causalidades únicas, desconsiderando a multideterminação do comportamento.

Não basta nomear um valor e esperar que ele, por si só, transforme a conduta da pessoa. A experiência do cliente não se modifica apenas porque ele “descobriu” que a gratidão, a liberdade ou a autenticidade são importantes para ele.

O que realmente altera a trajetória de alguém são as contingências organizadas ao redor desse valor, ou seja, as oportunidades concretas que possibilitam a seleção e manutenção de novos comportamentos.

Isso me fez lembrar a lógica de algumas campanhas de saúde pública: acreditar que o número de infecções sexualmente transmissíveis cairá drasticamente apenas porque foram distribuídas camisinhas ou espalhados cartazes pelas universidades. O mesmo raciocínio se aplica a outras estratégias: as pessoas se vacinaram porque mostraram o impacto da doença; espera-se que reduzam o consumo de cigarro porque há imagens de sofrimento no verso da embalagem.

A informação está disponível, o valor da prevenção é enfatizado, mas isso não significa que o comportamento irá mudar. Sem uma organização de contingências eficaz, que envolva acesso facilitado, incentivo ao uso de alternativas e o desenvolvimento de repertórios para modificar padrões de consumo, o comportamento esperado pode simplesmente não se consolidar.

Ficou claro? Então, vamos ao exemplo:

Vamos supor que o seu cliente demonstrou identificação com a ideia de "autenticidade".

Em linhas gerais, na internet, encontramos a seguinte definição:

"A autenticidade é a capacidade de ser verdadeiro consigo mesmo, de agir de acordo com nossos valores e crenças mais profundos.”

Em um primeiro momento, dentro da lógica cultural predominante, pode-se considerar essa perspectiva um norte válido para guiar a atuação nas relações com o mundo. No entanto, a ausência de uma operacionalização adequada pode gerar lacunas imensas.

“capacidade de ser verdadeiro consigo mesmo”

Ser verdadeiro consigo mesmo pressupõe, nas entrelinhas, que o indivíduo adquiriu um repertório de autoconhecimento independente das relações reais que o cercam, como se houvesse uma entidade do "eu" formada à parte da influência da comunidade verbal e da cultura em que está inserido – o que, por si só, contradiz os fundamentos da Análise do Comportamento.

Os discursos sobre "ser verdadeiro" frequentemente surgem em contextos de imposição de opinião, justificativa para afastamento social ou explicação para condutas insensíveis. Aqui, já podemos notar a distância entre a ideia abstrata do que seria essencialmente verdadeiro (um termo arbitrário) e a forma como o ambiente se organiza para reforçar certos comportamentos sob essa justificativa.

  • O que significa "ser verdadeiro" na prática?

  • Você sente que há momentos ou contextos em que "ser verdadeiro" pode ser mais ou menos desejado?

  • Como você reage quando alguém diz que está sendo verdadeiro com você?

  • Já aconteceu de você se arrepender de ter sido "verdadeiro"? O que aconteceu?

  • Ser verdadeiro sempre significa falar tudo o que pensa?

  • O que te levou a sentir que precisa ser verdadeiro?

  • Em quais situações você já ouviu que era necessário "ser verdadeiro"? Essas situações tinham algo em comum?

  • Como você reage quando a verdade do outro entra em conflito com a sua?

  • O que você espera que aconteça ao dizer a sua verdade?

  • Quando você diz que precisa ser verdadeiro, isso significa que a outra pessoa precisa aceitar sua verdade?

  • Se alguém considera sua "verdade" injusta ou agressiva, isso muda algo para você?

  • Você acredita que ser verdadeiro é sempre um valor positivo, ou existem situações em que isso pode ser prejudicial?

  • O que acontece quando duas pessoas que valorizam "ser verdadeiro" discordam profundamente?

  • Você se sentiria confortável se alguém fosse tão verdadeiro com você quanto você deseja ser com os outros?

  • Se ser verdadeiro é tão importante, por que nem sempre conseguimos agir dessa forma?

“agir de acordo com nossos valores e crenças mais profundos”

Perceba que valores e crenças mais profundos não surgem no vazio; eles estão diretamente ligados às verbalizações aprendidas dentro de um meio social em um momento específico da história. Os desejos que hoje parecem intrínsecos ao ser humano não eram os mesmos para os vikings, os romanos, uma tribo isolada ou uma sociedade que nunca acessou determinados direitos.

Se esses valores não passam por uma análise mais criteriosa, podem facilmente se tornar instrumentos de dominação, onde discursos legitimam relações de poder desiguais. Isso ocorre, também, quando a moralidade, divulgada como um conjunto de valores essenciais, é usada para justificar o abuso do abusador, a violência do agressor ou o controle do pai alcoolista sobre a mãe.

A profundidade de um valor ou sentimento não está no quanto ele parece enraizado no sujeito, mas no impacto que gera no ouvinte, que, por sua vez, o validará ou contestará com base em critérios pessoais e, inevitavelmente, em seus próprios interesses.

Dessa forma, um valor pode parecer "profundo" não por ser uma verdade essencial, mas porque é reforçado socialmente pela dinâmica de um grupo que define o que deve ser considerado importante. Aquilo que hoje se enxerga como um princípio inquestionável pode, em outro momento histórico ou contexto cultural, ser completamente irrelevante ou até mesmo inexistente.

Nesse momento, fico satisfeito em ressaltar a importância do cuidado ao propagar ideias que, desprovidas de contexto, podem parecer soluções universais, mas que, na prática, pouco contribuem para mudanças reais.

Valores não são atalhos, nem fórmulas prontas – são construções sociais que precisam ser operacionalizadas e analisadas criticamente. Sem esse cuidado, corremos o risco de perpetuar discursos que soam profundos, mas que, na ausência de ações concretas, tornam-se apenas narrativas vazias, incapazes de gerar transformação.

O desafio, portanto, não está em simplesmente nomear valores ou incentivar reflexões genéricas, mas em organizar contingências que possibilitem mudanças reais, alinhadas às particularidades de cada indivíduo e suas relações com o mundo.

Para finalizar, se valores não surgem no vazio, então "ser autêntico" também não é uma verdade absoluta. O que chamamos de autenticidade é, na prática, um conjunto de comportamentos moldados por contingências sociais, aprendidos e mantidos em função das consequências que produzem.

Dessa forma, ao invés de tratar a autenticidade como uma qualidade inata ou um ideal absoluto, podemos analisá-la dentro da tríplice contingência – ou seja, observando quais contextos evocam esse comportamento, como ele se manifesta e quais efeitos gera nas relações interpessoais.

Abaixo, seguem algumas perguntas que podem ajudar a operacionalizar o conceito de autenticidade dentro dessa estrutura:

Operacionalizando "Ser Autêntico":

Antecedente (o que ocorre antes da resposta):

  • Em quais contextos a pessoa sente que precisa ser autêntica/verdadeira?

  • Existe algum estímulo específico que evoca esse comportamento? Conversas sobre valores pessoais, necessidade de tomar decisões, confronto com opiniões diferentes?

  • "Ser autêntico" surge mais frequentemente quando a pessoa sente que está sendo forçada a agir de determinada forma?

  • Que tipo de interação ou ambiente reforça essa necessidade de autenticidade? Redes sociais, família, trabalho, amigos?

  • Existe um padrão de sentimentos antes de expressar autenticidade? A pessoa sente frustração, orgulho, ansiedade ou alívio antes ou durante agir dessa maneira?

Resposta (aquilo que é feito):

  • O que exatamente a pessoa faz quando diz que está sendo autêntica? Ela expressa sua opinião de maneira direta? Adota uma postura mais defensiva? Justifica suas escolhas?

  • O comportamento verbal envolve afirmações como "eu sou assim e ponto", "não vou mudar para agradar ninguém", "eu sou autêntico, não falso"?

  • Como ela se comporta fisicamente nesse momento? Mudanças na expressão facial, postura corporal, gestos?

  • A autenticidade dela é consistente em diferentes contextos, ou varia dependendo do público e da situação?

  • Como ela define autenticidade? Está associada à honestidade, à coerência entre discurso e prática, ou à rejeição de normas sociais?

  • Em que situações a pessoa já sentiu que estava "se traindo" ou "não sendo autêntica"? O que ela fez e qual foi o impacto disso

Consequência (o que acontece depois da resposta):

  • Como as pessoas ao redor reagem quando ela age dessa forma? Elas validam, confrontam, criticam ou reforçam o comportamento?

  • "Ser autêntico" aproxima ou afasta as pessoas? A pessoa percebe que, ao se expressar de determinada maneira, fortalece ou enfraquece relações?

  • Depois de agir de forma autêntica, a pessoa sente alívio, orgulho, arrependimento, culpa ou frustração?

  • Ela já experimentou consequências negativas por "ser autêntica"? Perda de oportunidades, conflitos interpessoais, rejeição social?

  • Há algum reforço envolvido? A pessoa se sente mais respeitada, ou percebe que sua autenticidade serve para ganhar status e influência dentro de certos grupos?

  • Em quais situações a autenticidade gerou benefícios e em quais gerou desafios?

  • Quando alguém se expressa com autenticidade para essa pessoa, como ela reage? Essa reação é semelhante à que ela espera dos outros?

[1] Aos que estão chegando agora na Análise do Comportamento, quando utilizamos o termo "Padrão Comportamental", entendam-no como uma forma de descrever aquilo que, em outras abordagens, poderia ser chamado de "personalidade".